Ficha técnica
À deriva (2023)
Técnica mista
Corda, madeira, linha, vidros, água e areia do mar.
Dimensões variáveis


À deriva

Insisto na conservação de memórias que acumulei pelo caminho. Tempo, marcas e permanecias. A pele é o suporte do tempo, do hábito. Casca rígida que suporta a espera, instabilidades. O mar insiste em depositar a madeira na margem, como uma espécie de expulsão do que não o pertence. Quando vejo a madeira que chega na praia, entendo os fragmentos que me chegam à consciência. Quando me veem deste outro lado, sou casca marcada, linha e sombra de um corpo vagante sem história, sem memória, depositado na margem de cá. O mar move esses fragmentos com tanta leveza, flutua o tronco mais pesado. Sinto que já não lembro como vim parar aqui, quais os nomes dos meus amores, quais as ruas que passava por lá. Longos tempos a deriva descascam as peles mais duras. Madeira e memória chegam do lado de cá. As vezes sonho que posso caminhar sobre águas, que poderia voltar andando para casa no momento que quiser. ilusão, embriaguez. Meu corpo, minha língua, meus gostos, tocam as margens de cá e provocam desconforto de uma presença estranha que voltou quando ninguém viu. Que chegou e ninguém esperou.
No meu desespero, tento tocar em tudo que posso ver e ouvir. Teço longos diálogos com as paredes mudas do quarto, vago por todos os labirintos possíveis, crio longas conversas com os ausentes. Quando esbarro nos muros intransponíveis, imagino os acontecimentos que residem do outro lado das largas paredes da cidade. Preencher os vazios de cá com meus ruídos, meus cheiros e meus desejos é a forma que encontro de inventar uma delirante forma de conexão.
O tempo a deriva molda a pele do meu rosto, novas linhas de um constante rito do desfazer. Recolho e analiso cuidadosamente os fragmentos que sobram destes desencontros, dos deslocamentos por este não lugar, confronto com minhas memórias numa incansável tentativa de me reconhecer. Já não sou, já não reconheço. Corpo vagante sem memória.
Migrante.



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